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RESENHA: Cárcere privado, um thriller brasiliense | Vera Lúcia de Oliveira

Margarida Patriota  marcou um golaço. Gol de placa. A autora de Cárcere privado (Rio de Janeiro: 7Letras, 2019) fez de Brasília, cidade onde vive, o espaço em que se passa a ação desse seu mais recente romance, suspense que, na melhor tradição do gênero, começa na cena do crime.

 

“Livre-se dela.” À primeira vista, foi a sugestão do marido, Jonas, que fez a narradora malvada planejar e, no momento propício, aprisionar a amiga Mara Dália num quarto de seu apartamento, com pés e mãos amarrados, boca lacrada com fita adesiva, sem chance de se libertar. Vingança? Sim, mas não como as diabólicas de Clouzot ou o psicótico de Hitchcock. A trama se constrói habilmente com a ideia da interação de vizinhos, ligados por vazamentos nos apartamentos; com gato que sussurra numa varanda; com gemidos discretos da vítima; com vizinho coreano com a sala cheia de caixas; outro, apaixonado por óperas e antiguidades chamado Vinhadalhos; e, para garantir o suspense, outro ainda, meio espião, funcionário da ABIN, dando frisson à narrativa, pois o crime se dá nas barbas desse especialista em escuta. E mais o porteiro do dia, Marcos, boa praça, amigo de papos desinteressados. Uma história, portanto, entre conversas, gemidos e sussurros. Uma história de vida da narradora-personagem cujo nome só sabemos que começa com M (Êmi, diz ela) com flashback no Rio de Janeiro, onde nasceu, perdeu a família tragicamente e, em Brasília, onde vive com o marido, funcionário do IBGE.

 

Depois de rodar a baiana, por ter sido humilhada, e perder o emprego cinco estrelas na Presidência da República, essa tradutora vive mergulhada em textos e dicionários, pois trabalha “pisando em ovos” como free lancer, garantida, no entanto, pela pensão de filha de militar que não se casa no papel… Dedica-se ainda ao trabalho voluntário a doentes terminais e a instituições de caridade com ajuda financeira, numa espécie de expiação, ou negando a realidade da morte, como veremos. Mulher jovem, inteligente, irônica, meio debochada e engraçada – ainda que dona de humor negro – faz o leitor grudar na cola dela, para empregar aqui o seu estilo desabusado, acompanhando os seus passos e, pasmem, torcer pelos seus malfeitos.

 

Nesse fim de semana em que mantém Dália presa, metaforicamente enterrada ou soterrada num quarto escuro no seu apartamento na Asa Sul de Brasília, lembra-se de sua vida pregressa: a família soterrada em cidade serrana do Rio de Janeiro (ela escapou por sorte); a avó velha adormecida que a criara e que dormia dezoito horas por dia; a madrinha querida que era virgem por opção; e o “contrapeso” Mara Dália, a quem herdou em sua orfandade.  Esta, sim, a sua pedra no sapato.

 

Mas, num suspense psicológico, não poderíamos prescindir da ajuda do doutor Freud. Assim, vamos levantar o tapete da narrativa para ver o que aí se escondeu. O tema que subjaz às atitudes  de Êmi é o da negação, isto é, a recusa da realidade dos fatos, mecanismo de defesa, segundo o criador da psicanálise, contra sofrimentos insuportáveis, recalcados no inconsciente. Desse modo, ao tapar a boca de Dália com fitas adesivas, e fazendo-a dormir como a avó, Êmi quer calar a sua voz opinativa, o seu mando, as suas negativas desencorajadoras, o seu “não” permanente, a sua presença e, por substituição, a sua orfandade, da qual Mara Dália fazia parte como uma lembrança funesta, uma feia cicatriz. A avó que dormia profundamente para contornar a dor, fugir da realidade, ou seja, negar os sofrimentos da vida. A madrinha, que a recebia com lanches deliciosos e que negava a própria sexualidade optando por uma vida “santa”, também influenciou Êmi no trabalho social. Negou, principalmente, a morte dos pais, irmão e avós maternos quando queria fazer os seus quitutes favoritos para o lanche, como se estivessem vivos e fossem chegar a qualquer hora: “(…)Pra mamãe, vou fazer o bolo de banana caramelizada, que ela adora. Pra papai, tem de ser pão francês com mortadela.”, ao que a avó pergunta ironicamente se eles virão “do céu ou do cemitério?”  E ela dá a resposta que define a sua negação: “Por que lembrar que eles morreram?” E diz ainda que em seus sonhos preferidos “ninguém na família morreu”. Dessa forma, nega para evitar o aniquilamento do ego. Outro elemento da história que confirma que algo não vai bem com ela é o fato de sentir-se vigiada: “tenho a impressão de que alguém me observa às ocultas. Na cozinha, então, enquanto abasteço a chaleira de água, cismo que alguém me espreita, punhal na mão.” Além disso, tem ilusão de ótica, vendo Dália de pé pela casa. Paranoia?

 

Por que Êmi resolveu vingar-se de Dália, justamente esta que era “um pedaço dos pais”, que tinha perdido? Queria negar a perda dos pais ou, pior, negá-los por terem-na deixado na orfandade? Esse é o tema complexo psicologicamente que percebemos submerso nas atitudes de Êmi.

 

Outro aspecto importante do livro é o olhar ambíguo de Êmi em relação às mulheres. A começar pela diarista Diva, com o “psst” irritante, pontual no serviço, e que tem uma trajetória de vida, cujo “asfalto está cheio de buracos”. Uma vida sofrida como a de tantas mulheres trabalhadoras do Brasil, que a narradora faz questão de ver com sensibilidade. Ou a tinhosa Dama Andante, andarilha folclórica das ruas de Brasília, com suas roupas estranhas e cintura de Barbie. E ainda a marrenta Pascoalina, doente terminal, a quem Êmi visita sempre e de quem aceita desaforo. E as trabalhadoras da Marcha das Margaridas, na Esplanada, militantes na luta contra todo tipo de exploração e machismo. Sem esquecer a manicure Maria Dalva, que a atende em casa. Não falta também crítica ao que é soterrado nos órgãos públicos brasileiros, longe da transparência.

 

Não pense, porém, o leitor que será fácil adivinhar o fim da história, pois nessa narrativa complexa que vai até a psicose,  a narradora embaralha as cartas e tudo pode mudar. Afinal, quem é, ou foi, Mara Dália? Nada de spoiler.  Só lendo o livro para saber.

 

Assim, numa linguagem rica, culta, com registros variados, com idas e vindas pela Asa Sul e Asa Norte, entre monumentos de Niemeyer, pelas quadras, comércio local, nas calçadas tortas, ponte do Bragueto, entre mangueiras, ipês, sapucaias, sucupiras e sibipirunas de Brasília, e até do Vale do Amanhecer, onde Êmi viveu uma experiência mística, só faltou a essa ótima história tão brasiliense uma canção do Renato Russo como música de fundo…