Lições da infância | Tribuna do Norte (RN)
É comum que, na maturidade de seu ofício, o escritor volte os olhos para aquilo que constitui suas reminiscências da infância, e nem sempre por razões sentimentais ou mera nostalgia, como no Romantismo. Pela simples razão de que a infância, como a imaginamos na idade adulta, nem sempre se revela um oásis de boas lembranças; há nevoas de conflitos e sombras de crises, dúvidas, decepções e perdas. Como sucede, de resto, com as demais fases da vida. A diferença é que a infância reserva um nicho de descobertas e deslumbramentos que não têm correspondentes nas fases subsequentes.
Em seu novo livro, cujo título já sugere seu tema – “Enquanto Aurora – momentos de uma infância brasileira”, a escritora Margarida Patriota flagra um tempo em que sua vida transita da infância para a puberdade, fixando-se em duas estações de férias escolares, quando avó, primos e tios se reúnem primeiro numa fazenda, numa área rural do município mineiro de Três Pontes; depois, numa localidade urbana indeterminada da Bahia.
Autêntico rito de passagem, o livro contém elementos de suspense, como a existência de um quarto proibido na casa de fazenda cedida por uma amiga da família, e desperta entre os primos uma acirrada disputa: deve-se tentar violar o segredo do cadeado que tranca o compartimento misterioso? Esse tema ocupa uma parte considerável de “Enquanto Aurora”, mas serve também para introduzir traços primários de cada um dos jovens em férias, mais sensíveis, agora, ao apelo da aventura. Do mesmo modo, sugestivas pistas do despertar dos desejos são dadas, mas sem que a narradora se aprofunde nessa direção, talvez por ter em primeiro plano os leitores juvenis.
Outro traço marcante de “Enquanto Aurora” é o retrato da avó Dulce como elemento aglutinador do núcleo familiar da narradora Maria, na medida em que aparece como fator de equilíbrio e experiência no texto. Apesar disso, ela não consegue deter o processo de dispersão que acomete a família, pontuada por separações e defecções de membros, como, aliás, ocorre hoje com a família brasileira. Através do olhar de Maria, narradora em primeira pessoa, uma complexa gama de episódios e acontecimentos do mundo dos adultos aflora na narrativa, como a anunciar à autora que sua hora de folguedos e brincadeiras está prestes a ceder lugar a ocupações mais graves. Para isso, é suficiente que ela observe com mais atenção os modos de vida de seus tios Horácio e Júlio César. O primeiro, de vocação monástica, resignado à solidão; o segundo, um personagem dom-juanesco a que os vários rompimentos não parecem arrefecer a busca da companheira ideal ou idealizada. Quanto aos pais da narradora, têm um papel, por isso mesmo, secundário, e em nada interferem, revelando, com seu comportamento discreto, a significativa mudança que os diferencia da geração de seus próprios pais.
Transitando entre o mundo das crianças e o dos adultos, “Enquanto Aurora” pode ser fruído tanto por aqueles quanto por estes, sem que perca o frescor das narrativas juvenis. Não foi por acaso, portanto, que Margarida Patriota enveredou por outros gêneros narrativos, com igual êxito.
Vencedor do Prêmio Ganymédes José de Literatura Infantil-UBE/RJ, “Enquanto Aurora” é um dos vários títulos que Margarida Patriota escreveu no gênero infanto-juvenil, a exemplo de “Uma Voz do Outro Mundo”, “Tudo Muda com Duda”, “Meu Pai Vive de Arte”, “A Morte do Peixe-Vagalume”. A par disso, escreveu ensaios críticos, como “Modernidade e Vanguarda nas Artes”, “Vanguarda: do Conceito ao Texto”, “Para Compreender Raimundo Correia”, fruto de suas pesquisas como professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Brasília. Finalmente, enveredou com sucesso pela ficção com os livros “Brasília é uma Festa” e “Elas Por Elas”, contos em que discute questões prementes da modernidade, como as relações de gênero, as mudanças de comportamento da mulher, as crises da meia-idade, entre outras.
*Por Nelson Patriota, escritor