Nilo Barroso resenha “Cárcere Privado”
Leio ‘Cárcere Privado’ romance de Margarida Patriota sobre as peripécias de uma moradora dum bairro grã-fino de Brasília, que traz em reclusão domiciliar sua ‘outra parte’, seu duplo. Ao ambientar ali sua narrativa, Margarida Patriota descortina ao leitor delicioso painel sobre o que rola, por assim dizer, em segmentos privilegiados da capital do país. Mas sendo isto verdadeiro, de modo algum é exaustivo.
‘Cárcere Privado’ vai além e oferece muito mais. Ao contrário do que se passa no Horla, famoso conto de Guy de Maupassant, cujo protagonista sucumbe à tirania de seu duplo; aqui a narradora-carcereira, ou carcereira-narradora, aprisiona, por via das dúvidas, sua ‘outra parte’, a quem trata por Mara Dália. A certa altura diz a narradora: “Antes de me refestelar no pufe, amarro uma ponta de barbante em torno dos seus tornozelos, e a outra, ao redor do meu pulso. Se acontecer de eu cochilar, e suas pernas se mexerem, sentirei o repuxo da coleira”.
Resultado, o relacionamento entre a protagonista e Mara Dália é divertidíssimo. Há passagens hilárias, como a visita à ala de doentes terminais dum hospital para animar uma octogenária desenganada. Aliás, o humor é a prova dos nove da inteligência. Escritor menos talentoso, ao tratar jocosamente, digamos assim, da difícil temática do duplo, seguramente colocaria tudo a perder. Mas Margarida Patriota é escritora de mão cheia. Conduz a narrativa sob o signo de um humor fino, inteligente, cáustico…na justa medida, a meu ver.
Sucede, no entanto, que o homem é um animal social como disse Aristóteles (penso que isto foi dito mais como desabafo do que propriamente como enunciado de natureza política). Pois bem, às vezes o feitiço vira contra o feiticeiro, e a narradora-carcereira cai vítima do outro ou… dos outros. No prédio em que vive, seu vizinho do andar de cima é um agente da ABIN (um araponga, como se dizia antigamente) que pela natureza do métier pode desbaratar os planos da carcereira. Para piorar, o vizinho de baixo é um diplomata…Bem, o psicanalista William Reich dizia que a chatice da conversação social lhe dava coceiras. Se isto tem aplicação universal, o Itamaraty deve ser uma espécie de Urtiga-mãe…
Em suma, ótimo “Cárcere Privado”. Uma última palavra: Antes de exterminar a coitadinha à míngua de alimento, oxigênio e comiseração humana, “solta a Mara Dália”, Margarida, “solta a Mara Dália”. Vocês duas formam uma dupla do barulho!