espaço
espaço
Fanpage da autora:

Resenhas

SITE DA ESCRITORA MARGARIDA PATRIOTA  Resenhas (Página 3)

Lições da infância | Tribuna do Norte (RN)

É comum que, na maturidade de seu ofício, o escritor volte os olhos para aquilo que constitui suas reminiscências da infância, e nem sempre por razões sentimentais ou mera nostalgia, como no Romantismo. Pela simples razão de que a infância, como a imaginamos na idade adulta, nem sempre se revela um oásis de boas lembranças; há nevoas de conflitos e sombras de crises, dúvidas, decepções e perdas. Como sucede, de resto, com as demais fases da vida. A diferença é que a infância reserva um nicho de descobertas e deslumbramentos que não têm correspondentes nas fases subsequentes.

Em seu novo livro, cujo título já sugere seu tema – “Enquanto Aurora – momentos de uma infância brasileira”, a escritora Margarida Patriota flagra um tempo em que sua vida transita da infância para a puberdade, fixando-se em duas estações de férias escolares, quando avó, primos e tios se reúnem primeiro numa fazenda, numa área rural do município mineiro de Três Pontes; depois, numa localidade urbana indeterminada da Bahia.

Autêntico rito de passagem, o livro contém elementos de suspense, como a existência de um quarto proibido na casa de fazenda cedida por uma amiga da família, e desperta entre os primos uma acirrada disputa: deve-se tentar violar o segredo do cadeado que tranca o compartimento misterioso? Esse tema ocupa uma parte considerável de “Enquanto Aurora”, mas serve também para introduzir traços primários de cada um dos jovens em férias, mais sensíveis, agora, ao apelo da aventura. Do mesmo modo, sugestivas pistas do despertar dos desejos são dadas, mas sem que a narradora se aprofunde nessa direção, talvez por ter em primeiro plano os leitores juvenis.

Outro traço marcante de “Enquanto Aurora” é o retrato da avó Dulce como elemento aglutinador do núcleo familiar da narradora Maria, na medida em que aparece como fator de equilíbrio e experiência no texto. Apesar disso, ela não consegue deter o processo de dispersão que acomete a família, pontuada por separações e defecções de membros, como, aliás, ocorre hoje com a família brasileira. Através do olhar de Maria, narradora em primeira pessoa, uma complexa gama de episódios e acontecimentos do mundo dos adultos aflora na narrativa, como a anunciar à autora que sua hora de folguedos e brincadeiras está prestes a ceder lugar a ocupações mais graves. Para isso, é suficiente que ela observe com mais atenção os modos de vida de seus tios Horácio e Júlio César. O primeiro, de vocação monástica, resignado à solidão; o segundo, um personagem dom-juanesco a que os vários rompimentos não parecem arrefecer a busca da companheira ideal ou idealizada. Quanto aos pais da narradora, têm um papel, por isso mesmo, secundário, e em nada interferem, revelando, com seu comportamento discreto, a significativa mudança que os diferencia da geração de seus próprios pais.

Transitando entre o mundo das crianças e o dos adultos, “Enquanto Aurora” pode ser fruído tanto por aqueles quanto por estes, sem que perca o frescor das narrativas juvenis. Não foi por acaso, portanto, que Margarida Patriota enveredou por outros gêneros narrativos, com igual êxito.

Vencedor do Prêmio Ganymédes José de Literatura Infantil-UBE/RJ, “Enquanto Aurora” é um dos vários títulos que Margarida Patriota escreveu no gênero infanto-juvenil, a exemplo de “Uma Voz do Outro Mundo”, “Tudo Muda com Duda”, “Meu Pai Vive de Arte”, “A Morte do Peixe-Vagalume”. A par disso, escreveu ensaios críticos, como “Modernidade e Vanguarda nas Artes”, “Vanguarda: do Conceito ao Texto”, “Para Compreender Raimundo Correia”, fruto de suas pesquisas como professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Brasília.  Finalmente, enveredou com sucesso pela ficção com os livros “Brasília é uma Festa” e “Elas Por Elas”, contos em que discute questões prementes da modernidade, como as relações de gênero, as mudanças de comportamento da mulher, as crises da meia-idade, entre outras.


*Por Nelson Patriota,  escritor

Solidão e esquecimento | Jornal Rascunho

Por Cida Sepulveda*

Em A lenda de João, o assinalado, Margarida Patriota prima pelo rigor estético ao retratar a história de Cruz e Souza, homem sofrido e poeta marginalizado.

 

É uma narrativa linear (facilitadora da leitura), com uma linguagem exaustivamente lapidada. A prosa poética dá o tom ao mesmo tempo doce e pesado aos sonhos e frustrações do protagonista. As recorrentes tentativas de se firmar socialmente como escritor, a labuta pela sobrevivência e a exclusão, são elementos geradores de crescente desesperança. O leitor participa da angústia que emana do texto, sente-se aflito e impotente em relação à sucessão de fatos que comprovam, a todo instante, a crueldade de uma sociedade de castas.

 

Linguagens tradicionais e contemporâneas em suas diversidades são incorporadas à construção artesanal do texto — que resulta no estilo, ou seja, na peculiaridade da obra, na invenção de uma forma a partir de todas as formas existentes.

 

Lenda é narração. O texto de Margarida é uma mutação do gênero, pois, embora preserve a “narratividade”, acrescenta-lhe sensorialidade. Escrito com lamento e ternura, o texto comunga com o leitor a vida vivida e a sonhada de um dos maiores poetas brasileiros.

 

Com este trabalho, Margarida abraça o poeta e o pinta com cores van goghianas. Homenagem à altura do homenageado. É tudo que Cruz e Souza desejou: reconhecimento. A velha pergunta se repete: até quando hostilizaremos os poetas verdadeiros?

 

Um talento aflora

 

João é o único rebento de um casal de servos da família de um militar e fazendeiro da região sul do país, de Desterro, Santa Catarina. O casal patrão não tem filhos, e a jovem patroa cuida do garoto desde o nascimento, como uma segunda mãe.

 

Uma das razões que a aproxima dos servos é a solidão em que vive na Casa Grande, pelo fato de o marido estar participando da Guerra do Paraguai.

 

Já no primeiro capítulo são abordados os seguintes temas: política, sexualidade, maternidade e diferenças sociais, entre outros, como nesta passagem inicial: (…) Guilherme, na peleja defende a pátria de cujos privilégios os braçais são alijados, salvo o de morrer defendendo-a. “Que as castas caiam!”, pregaria fosse homem de calça e barba. Não fosse mulher, seria oradora de tribuna… Só que as castas existem. Por meio dos símbolos que as distinguem, formam pátrias dentro da pátria. “Tanto que migrar de uma casta para outra equivale a entrar em território estrangeiro…” A patroa ensina o garoto a ler e a escrever e o introduz no conhecimento da cultura da elite. Não há preocupação com datas, quantidades e fatos reais, apenas com a interpretação histórica voltada para o resgate da identidade de um ser humano cuja trajetória de vida foi marcada pela luta inglória.

 

O trágico é cotidiano: solidão literária, miséria e exclusão ferem gravemente um ser moldado para o intelecto e a poesia. A consciência da injustiça em relação ao seu talento aparece muito bem nesta passagem: “Poetas menos célebres proferem palestras concorridas, declamam para auditórios repletos. Alguns são pagos para escrever em jornais. Ele, que os jornais citam a três por dois, nenhuma academia quer ouvir…”

 

Resgate de um artista

 

Já rapaz, João perde o padrinho, que morre de repente. Isso ocasiona mudanças estruturais na vida dos que estão vinculados à fazenda. Resolve tentar a vida no Rio de Janeiro, mas encontra quase total rejeição por parte da elite intelectual e artística da cidade, com exceção de um pequeno grupo de cultores da poesia. Estes admiram o poeta e tentam ajudá-lo, inutilmente.

 

Casa-se com uma moça que se torna sua grande companheira de toda a vida. Juntos, enfrentam a pobreza e a discriminação social. A prole cresce e João, profissionalmente, mantém-se estagnado num emprego que não lhe dá visibilidade nem dinheiro.

 

Para agravar a tragédia cotidiana, sua esposa adoece repentinamente. João passa a ter uma rotina estafante. Além do trabalho regular, cuidará da casa, dos filhos e da mulher acometida por um mal psiquiátrico.

 

Depois de longo período em estado de demência, ela, da mesma maneira que perdeu a lucidez, volta ao normal. Em seguida, João contrai tuberculose e, embora os amigos juntem dinheiro para interná-lo num sanatório, isso não chega a acontecer.

 

Enfim, paupérrimo e desesperado, experimenta os horrores da miséria, da loucura e da tuberculose, sem parar de escrever. Entre os que esmolaram a seu favor, o colunista de O país, Artur Azevedo, escreve: Não estou no catálogo de seus amigos, nunca troquei uma palavra com ele, conheço-o apenas pelos seus escritos; não me compete, pois, tomar a iniciativa de um movimento qualquer em seu favor. Mas isso não obsta a que me ponha desde já ao serviço de todas as pessoas que, por meu intermédio, desejarem de qualquer modo manifestar a sua simpatia pelo autor…

 

A lenda de João, o assinalado é um livro sério. O narrador, despojado de vaidades, resgata o artista silenciado pelo tempo e pela solidão literária, condição da maioria dos verdadeiros artistas, vivos ou mortos.

 


*É escritora e professora. Autora de Coração marginal, entre outros. Vive em Campinas (SP).

Ler na íntegra: Jornal Rascunho

Cartografia do universo feminino | Linguagem Viva

Por Ronaldo Cagiano*

Com uma trajetória literária marcada por mais de vinte livros de prosa, entre infanto-juvenil e adulta, além de ensaios, crítica e tradução, obras que valeram alguns importantes prêmios literários, a escritora brasiliense e professora da UnB, Margarida Patriota, acaba de lançar o volume de contos Elas por elas, numa sóbria edição da 7Letras.

São quatorze histórias, em que a autora, transita por um universo no qual predominam situações (re)colhidas no universo da mulher contemporânea, sem contudo desbordar para a defesa de um gênero que, embora sendo maioria, sempre foi tratado com menoscabo em todos os segmentos. Não se trata de literatura feminina, como comumente se tenta estabelecer num equivocado processo de caracterização da atual produção ficcional brasileira que mutis separam em guetos, segmentos ou vertentes, que tanto a desqualificam ou diminuem. São histórias humanas em que o feminino está inserido dentro de um amplo espectro da vida quotidiana, tendo a mulher como personagem ou narrador.

Margarida mapeia a diversidade das relações domésticas, históricas, políticas, culturais e psicológicas das mulheres, mas tão peculiares à própria condição humana. Elas que, ao lado do homem companheiro ou ator social, povoam o inconsciente coletivo ajudam a compor o grande mosaico da vida, na qual a luta por poder ou espaço se exerce com a mesma intensidade e se reflete nos dramas e tragédias vividos por ambos.

Ao dar voz e vez a essas mulheres viscerais, protagonistas de um mundo em que é tênue a fronteira entre a emoção e a turbulência, concede-lhes um espírito de resistência ao ordinário, escapando aos chavões do sentimentalismo, tentação que muitas vezes deságua no engajamento ou na apologia de classe e empobrece a ficção. Aqui, as mulheres capturadas pelo olhar ao mesmo tempo denso e poético de Margarida Patriota entram em cena, não para vingar-se do homem, mas para abordar suas dores ou participar seus dramas, frutos das ações, da consciência ou das relações afetivas. E nesse fluxo narrativo preponderam o humano, o sociológico e o antropológico, com destaque para uma mulher que não deixa transparecer nem o complexo de inferioridade nem os recalques ancestrais da guerra dos sexos. Ela subsiste com ou apesar dos homens, sendo foco ou coadjuvante em situações às vezes banais, às vezes tensas, mas que dizem respeito a um quotidiano, em que a correta interpretação das contingências vividas por elas, desmistifica toda uma cultura literária que muitas vezes, ao descrever ou refletir sobre esse cenário, peca pela simplificação ou pela caricatura.

Com as histórias candentes de Elas por elas, Margarida Patriota fala de mulheres conscientes, maduras, mulheres de vários extratos sociais, faixas etárias e intelectuais, que vivem ou dividem os conflitos que lhes afetam e constróem efetivamente não só o imaginário popular, mas são essenciais à compreensão de nosso lugar no mundo. Um livro que a coloca, sem favor algum, dentre os melhores escritores brasileiros.

 


*Ronaldo Cagiano é escritor e crítico literário.